Conto de Natal 2009
O ENGRAXATE
Milagre de Natal de Uma Infância Pobre em Itararé
“Sou mutante. Não anseio a majestades cristalizadas em
palavras que não voltam atrás. Eu volto palavras, gestos
e sentimentos. Mudam tempos, momentos, situações...
mundo… Por que não mudo eu?... ” (Paul Valéry).
O pai que tivera alguns bens imóveis em Harmonia, Monte Alegre, Paraná, perseguido por grileiros e jagunços do político corrupto Lupion do Paraná, de uma hora pra outra ficou pobre, perdeu tudo, resolveu voltar para Itararé, para não ter que matar ou morrer, e ali a nossa vida degringolou de vez. Eu um guri depois de seis irmãs, vendo a coisa sofrível em casa, a portentosa mãe lavando roupas pra fora para sobrevivermos, a parca pensão que o pai depois doente recebia, e, cedo, muito cedo ainda, tive que trabalhar para ajudar em casa. De primeiro e muito precoce no trabalho, ainda cursando o primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, fui engraxar sapatos. Depois fui vendedor de dolé de groselha preta, depois fui bóia-fria em campos de feijão-jalo em terras do Romero, depois marceneiro, depois garçom no Bar do Calixtrato, até precocemente começar a cantar em shows de pratas da casa imitando ídolos da Jovem Guarda, depois sendo locutor de rádio e mesmo com 16 anos começar a escrever para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado.
Mas o começo da lida rueira foi difícil no início, para um manteiga derretida, quase bendito fruto entre tantas irmãs. Tinha eu mal-e-mal uns nove anos e tanto. A tosca caixa de engraxar sapatos pintada de verde-musgo e fora o pai que aos poucos e com muito custo fizera. Ganhando a Praça Coronel Jordão, ali concorrendo com guris mais afeiçoados ao serviço, eu mal sabia dar lustro direito, sequer passar graxa aprendera, muito menos limpar os sapatos dos botocudos. Teria que rapidamente aprender trabalhando, tinha que me virar como pudesse, olhar de piá pidão, com amarelão, ainda as agruras da primeira infância. Enquanto esperava um ou outro freguês de ocasião e percurso (e tive poucos, confesso), caixa de engraxar nos ombros, andava serelepe pela Rua XV, sondando os bares, as pessoas chiques, as gentes ricas dos lugares e suas acontecências no entorno festivo. Via aquele pessoal boêmio e todo trancham tomando rotineiros aperitivos, meninos bem vestidos saboreando uma Crush – que era muito cara para mim – outros comendo sonhos de valsas na Bombonieri Los Angeles em frente ao Grupo Escolar Tomé Teixeira do tempo do Professor Bonilha. Eu, mal-e-mal um piá ranhento que amava os Beatles e Tonico e Tinoco.
Tempo de vacas magras. Final dos anos 60, Itararé emperiquitada para os festejos de Natal, Walter Santana Menk no auge. Os guris ricos ganhavam brinquedos caros, locomotivas movidas a pilha, as casas com luzes coloridas, eu mal-e-mal tinha uma sopa de fubá com couve rasgada, um abraço demorado do pai, uma oração plangente da mãe, e suco do chafariz do Bairro Velho com bolinhos de chuva e licores de ausências. Tempos difíceis. Só por Deus.
E corto a pitanga da história aqui, lembrando que dia desses estava no Bar Chaplin, na rua Prudente de Morais, atrás do Palácio Vadico, do amigo e camarada Carlinhos Sampaulino, quando passou um guri de rua e me pediu que lhe pagasse um doce. Disse pro guri escolher. Ele deu um assobio e chamou dois outros moleques da turma, o Carlinhos disse que eles eram pidonchos mesmo, que eu não ligasse, mas eu aceitei e lhes paguei uma guloseima, eles agradeceram e saíram sorrindo, lambendo os beiços. Expliquei, emocionado, ao Carlinhos, justificando, tristonho de momento:
-Eu fui um guri pobre como eles, era Engraxate... Caixa de engraxar sapatos nos ombros. Olhava com jeito pidão o pessoal bebendo, comendo, que me viravam as costas, refugavam, mesmo quando eu pedia serviço:
-Vai graxa, moço?.
Com fome, pobrinho, queria tanto uma maria-mole de coco queimado, um encapotado de frango, um suspiro, umas balas paulistinhas ou toffe, um cuque de abóbora, uma Grapete, uma Crush estupidamente gelada, mas os tipos me olhavam com desdém, eu era da raia pobre, não queriam se misturar. Por isso ali, no Bar do Carlinhos, vencedor, lembrando dos tempos difíceis da vida dos tempos em que a água bebia a onça, não custava nada me colocar no lugar do outro, sentir a dor do outro, e pagar um doce, uma tubaina, para um guri de rua, um menino que eu também fui e ali estava apenas cumprindo meu dever com a consciência e a memória de um tempo já perdido nos calipiás do longe. Pois era isso o que eu queria dizer, voltando ao causo memorial. Os dias da infância pobre nas ruas, na Praça Coronel Jordão, um e outro sujeito que eu engraxava reclamando que eu manchara de graxa a calça calhambeque, que faltou lustro eficaz na botinha sem meia, quando não, os tipos fuinhas e mãos-de-vaca não me pagavam nada, e eu ficava, além de faminto, sem dinheiro pra levar pra cara, com a cara de pardo anjo sofrido a clamar por fé em justiça, num natal perdido nas dobras de um tempo qualquer. Mas nem sempre foi assim, claro. Há um Deus. E há ainda anjos azuis que tomam conta dos meninos de rua.
Subindo a Rua XV de Novembro, tempo amuando, friorento, eu, de chinelos de dedos gasto de um lado de tanto usar em peregrinação, parei em frente ao Bar XV que pintara uma chuvinha. Fiquei olhando pra dentro, com fome, as estufas cheias, o bar com bilhar, todo num ambiente alvissareiro, entrei, pedindo, quase implorando entre lágrimas:
-Vai graxa, Seu moço? Vai graxa, senhor? Vai graxa, Seu isso... Seu aquilo...
Eu queria só um par de sapatos de bico fino para engraxar, para poder levar uns trocados pra casa, uns tostões que fossem, a barriga roncando, quem dera uma coxinha, um encapotado de frango, um milagre – não era Natal?. Olhar brejeiro, roupa humilde, jeito pidão no meu silencial de poeta se arvorando na alma triste, e foi quando tudo aconteceu. O Seu Abrahão – nunca soube o nome inteiro dele, se era o que tinha uma empresa de ônibus, uma transportadora, ou um parente do clã – mas um tipo bem apessoado, bem vestido com zelo, impoluto, alto, moreno claro, na flor da idade, pose de rico, que traduziu a minha tristice com tez chã e depressinha pediu ao garçom do Bar:
-Sirva uns encapotados de frango pro guri aí.
(Humildemente chorei por dentro, mas não demonstrei, claro, talvez só estrelas brilhando nos olhos de pidão capitulado.)
-Sirva uma Crush também, ordenou Seu Abrahão.
E eu me senti dentro de um coração no céu de todas as honras. Comi e me fartei, bebi a gasosa, olhei o seu Abrahão que ainda me deu uns trocados e disse “Vá pra casa piá, está frio, vá descansar, vá com Deus... ”
Agradeci, “Deus que ajude Seu moço”, e saí coroado de amor, de humanismo, andar-de-segura-peido... calcanhar de frigideira...
Naquela hora senti que um anjo engraxava de luz a alma daquele homem de coração alumbrado que Deus pusera em meu caminho de berebento guri rueiro. Certamente foi a melhor ceia de natal que tive em toda a minha pobre infância rueira de trabalhador precoce.
Cresci, fiz-me forte por Deus, com resiliência lutei, me formei, venci na vida. Não sei direito que Abrahão era. Mas Deus certamente sabe, anotou na caderneta celeste o crédito. Nalgum lugar do passado a minha lágrima de fé e luz transbordou. Hoje ando pelas ruas de cacau quebrado de Itararé com a consciência tranquila, com a sensação do dever cumprido, eu, um guri mal-e-mal crescido que procura em cada ser, em cada irmão, em cada amigo, em cada companheiro e camarada, a alma daquele abençoado “Abrahão” que, certamente, fez da minha infância pobrinha um circunstancial presépio de luz naquele momento em que me estendeu seus sensíveis olhos bondosos, suas caridosas mãos de lutador, sua cintilante alma de asas...
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Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras, Dezembro 2009
E-mail: peosilas@terra.com.br - Site: www.itarare.com.br/silas.htm
Texto da Série “Confesso que Sobrevivi” Memórias de Uma Infância Pobre
O ENGRAXATE
Milagre de Natal de Uma Infância Pobre em Itararé
“Sou mutante. Não anseio a majestades cristalizadas em
palavras que não voltam atrás. Eu volto palavras, gestos
e sentimentos. Mudam tempos, momentos, situações...
mundo… Por que não mudo eu?... ” (Paul Valéry).
O pai que tivera alguns bens imóveis em Harmonia, Monte Alegre, Paraná, perseguido por grileiros e jagunços do político corrupto Lupion do Paraná, de uma hora pra outra ficou pobre, perdeu tudo, resolveu voltar para Itararé, para não ter que matar ou morrer, e ali a nossa vida degringolou de vez. Eu um guri depois de seis irmãs, vendo a coisa sofrível em casa, a portentosa mãe lavando roupas pra fora para sobrevivermos, a parca pensão que o pai depois doente recebia, e, cedo, muito cedo ainda, tive que trabalhar para ajudar em casa. De primeiro e muito precoce no trabalho, ainda cursando o primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, fui engraxar sapatos. Depois fui vendedor de dolé de groselha preta, depois fui bóia-fria em campos de feijão-jalo em terras do Romero, depois marceneiro, depois garçom no Bar do Calixtrato, até precocemente começar a cantar em shows de pratas da casa imitando ídolos da Jovem Guarda, depois sendo locutor de rádio e mesmo com 16 anos começar a escrever para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado.
Mas o começo da lida rueira foi difícil no início, para um manteiga derretida, quase bendito fruto entre tantas irmãs. Tinha eu mal-e-mal uns nove anos e tanto. A tosca caixa de engraxar sapatos pintada de verde-musgo e fora o pai que aos poucos e com muito custo fizera. Ganhando a Praça Coronel Jordão, ali concorrendo com guris mais afeiçoados ao serviço, eu mal sabia dar lustro direito, sequer passar graxa aprendera, muito menos limpar os sapatos dos botocudos. Teria que rapidamente aprender trabalhando, tinha que me virar como pudesse, olhar de piá pidão, com amarelão, ainda as agruras da primeira infância. Enquanto esperava um ou outro freguês de ocasião e percurso (e tive poucos, confesso), caixa de engraxar nos ombros, andava serelepe pela Rua XV, sondando os bares, as pessoas chiques, as gentes ricas dos lugares e suas acontecências no entorno festivo. Via aquele pessoal boêmio e todo trancham tomando rotineiros aperitivos, meninos bem vestidos saboreando uma Crush – que era muito cara para mim – outros comendo sonhos de valsas na Bombonieri Los Angeles em frente ao Grupo Escolar Tomé Teixeira do tempo do Professor Bonilha. Eu, mal-e-mal um piá ranhento que amava os Beatles e Tonico e Tinoco.
Tempo de vacas magras. Final dos anos 60, Itararé emperiquitada para os festejos de Natal, Walter Santana Menk no auge. Os guris ricos ganhavam brinquedos caros, locomotivas movidas a pilha, as casas com luzes coloridas, eu mal-e-mal tinha uma sopa de fubá com couve rasgada, um abraço demorado do pai, uma oração plangente da mãe, e suco do chafariz do Bairro Velho com bolinhos de chuva e licores de ausências. Tempos difíceis. Só por Deus.
E corto a pitanga da história aqui, lembrando que dia desses estava no Bar Chaplin, na rua Prudente de Morais, atrás do Palácio Vadico, do amigo e camarada Carlinhos Sampaulino, quando passou um guri de rua e me pediu que lhe pagasse um doce. Disse pro guri escolher. Ele deu um assobio e chamou dois outros moleques da turma, o Carlinhos disse que eles eram pidonchos mesmo, que eu não ligasse, mas eu aceitei e lhes paguei uma guloseima, eles agradeceram e saíram sorrindo, lambendo os beiços. Expliquei, emocionado, ao Carlinhos, justificando, tristonho de momento:
-Eu fui um guri pobre como eles, era Engraxate... Caixa de engraxar sapatos nos ombros. Olhava com jeito pidão o pessoal bebendo, comendo, que me viravam as costas, refugavam, mesmo quando eu pedia serviço:
-Vai graxa, moço?.
Com fome, pobrinho, queria tanto uma maria-mole de coco queimado, um encapotado de frango, um suspiro, umas balas paulistinhas ou toffe, um cuque de abóbora, uma Grapete, uma Crush estupidamente gelada, mas os tipos me olhavam com desdém, eu era da raia pobre, não queriam se misturar. Por isso ali, no Bar do Carlinhos, vencedor, lembrando dos tempos difíceis da vida dos tempos em que a água bebia a onça, não custava nada me colocar no lugar do outro, sentir a dor do outro, e pagar um doce, uma tubaina, para um guri de rua, um menino que eu também fui e ali estava apenas cumprindo meu dever com a consciência e a memória de um tempo já perdido nos calipiás do longe. Pois era isso o que eu queria dizer, voltando ao causo memorial. Os dias da infância pobre nas ruas, na Praça Coronel Jordão, um e outro sujeito que eu engraxava reclamando que eu manchara de graxa a calça calhambeque, que faltou lustro eficaz na botinha sem meia, quando não, os tipos fuinhas e mãos-de-vaca não me pagavam nada, e eu ficava, além de faminto, sem dinheiro pra levar pra cara, com a cara de pardo anjo sofrido a clamar por fé em justiça, num natal perdido nas dobras de um tempo qualquer. Mas nem sempre foi assim, claro. Há um Deus. E há ainda anjos azuis que tomam conta dos meninos de rua.
Subindo a Rua XV de Novembro, tempo amuando, friorento, eu, de chinelos de dedos gasto de um lado de tanto usar em peregrinação, parei em frente ao Bar XV que pintara uma chuvinha. Fiquei olhando pra dentro, com fome, as estufas cheias, o bar com bilhar, todo num ambiente alvissareiro, entrei, pedindo, quase implorando entre lágrimas:
-Vai graxa, Seu moço? Vai graxa, senhor? Vai graxa, Seu isso... Seu aquilo...
Eu queria só um par de sapatos de bico fino para engraxar, para poder levar uns trocados pra casa, uns tostões que fossem, a barriga roncando, quem dera uma coxinha, um encapotado de frango, um milagre – não era Natal?. Olhar brejeiro, roupa humilde, jeito pidão no meu silencial de poeta se arvorando na alma triste, e foi quando tudo aconteceu. O Seu Abrahão – nunca soube o nome inteiro dele, se era o que tinha uma empresa de ônibus, uma transportadora, ou um parente do clã – mas um tipo bem apessoado, bem vestido com zelo, impoluto, alto, moreno claro, na flor da idade, pose de rico, que traduziu a minha tristice com tez chã e depressinha pediu ao garçom do Bar:
-Sirva uns encapotados de frango pro guri aí.
(Humildemente chorei por dentro, mas não demonstrei, claro, talvez só estrelas brilhando nos olhos de pidão capitulado.)
-Sirva uma Crush também, ordenou Seu Abrahão.
E eu me senti dentro de um coração no céu de todas as honras. Comi e me fartei, bebi a gasosa, olhei o seu Abrahão que ainda me deu uns trocados e disse “Vá pra casa piá, está frio, vá descansar, vá com Deus... ”
Agradeci, “Deus que ajude Seu moço”, e saí coroado de amor, de humanismo, andar-de-segura-peido... calcanhar de frigideira...
Naquela hora senti que um anjo engraxava de luz a alma daquele homem de coração alumbrado que Deus pusera em meu caminho de berebento guri rueiro. Certamente foi a melhor ceia de natal que tive em toda a minha pobre infância rueira de trabalhador precoce.
Cresci, fiz-me forte por Deus, com resiliência lutei, me formei, venci na vida. Não sei direito que Abrahão era. Mas Deus certamente sabe, anotou na caderneta celeste o crédito. Nalgum lugar do passado a minha lágrima de fé e luz transbordou. Hoje ando pelas ruas de cacau quebrado de Itararé com a consciência tranquila, com a sensação do dever cumprido, eu, um guri mal-e-mal crescido que procura em cada ser, em cada irmão, em cada amigo, em cada companheiro e camarada, a alma daquele abençoado “Abrahão” que, certamente, fez da minha infância pobrinha um circunstancial presépio de luz naquele momento em que me estendeu seus sensíveis olhos bondosos, suas caridosas mãos de lutador, sua cintilante alma de asas...
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Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras, Dezembro 2009
E-mail: peosilas@terra.com.br - Site: www.itarare.com.br/silas.htm
Texto da Série “Confesso que Sobrevivi” Memórias de Uma Infância Pobre