domingo, 12 de dezembro de 2010

Conto de Natal "O Tocador de Acordeom" Silas Correa Leite Para o Pai, Maestro Antenor Correa Leite








Conto de Natal 2010


O Tocador de Acordeom



Depois de tantas irmãs, eu finalmente nasci. O primeiro varão do clã. Isso me deu alguns privilégios, inclusive e principalmente afetivos, claro, pois à época meu pai era rico, tinha comércio e lidava com lotes de terra no Bairro das Cem Casas, em Harmonia, Monte Alegre, Paraná, hoje Telêmaco Borba, região de Tibagi. Depois de mim ainda nasceram duas irmãs. Quando meus irmãos nasceram, eu já carregava a luz. E a cruz. Porque meu patriarca teve problemas com jagunços e grileiros do Lupion, corrupto governador do Paraná de então, e teve que voltar para Itararé, para não ser morto. Perdeu quase tudo que investira em terrenos. Aí é que começa a minha história. Por aí também começa o lado ruim de ser o chamado bendito fruto. Pois enquanto eu era guri, era bajulado, tinha do bom e do melhor. Quando começou a época das vacas magras, quem teve que cortar a infância pela metade e trabalhar, ajudando em casa, fui eu. De engraxate a vendedor de dolé de groselha preta, de bóia fria a vendedor de pipoca, de vendedor de banana-caturra a vendedor de caldo de cana, de bóia fria a aprendiz de marceneiro na Marcenaria Estrela do meu primeiro pai-patrão, o Jora Leite. O trabalho para ajudar em casa; o guri que eu era assumindo valores e ajudando o patriarca prover o lar. O pai também era regente de corais que fundava; era maestro de bandas e conjuntos regionais evangélicos que inventava de inventar; músico, compositor sacro, arranjador, letrista, dono de vários instrumentos, de bandolim a flauta transversal, de cavaquinho a banjo, de clarinete a acordeões. Mas o pior era eu, carregando o peso, já que meu o pai usava bengalas e tinha problemas de úlcera varicosa nas perdas, às vezes as feridas sangravam, ele tinha que usar meias elásticas e mancava então, e o guri magricela e cara de boi lambido que eu era, com amarelão, calcanhar de frigideira e andar-de-segura-peido, é quem tinha que carregar o bendito do pesado acordeom Universal Líder vermelho de 300 baixos que era uma cruz e tanto pra mim, pequeno, tão esquálido e cara de pidão. E o pai inventava de tocar na rádio, em praças públicas, na igreja, em cultos de oração, nas escolas dominicais, em variados horários, e era eu, o bendito fruto, rebento varão, filho homem, quem tinha que carregar o bendito do pesado instrumento. E o pai, Antenor, além de pregar, cantar e tocar, no acordeom era quem fazia firulas e se sentia à vontade, brilhante e vaidoso, ótimo pregador dos evangelhos também. E ainda, além dos hinos evangélicos, protestantes, como “Mais Perto Quero Estar meu Deus de Ti”, ou mesmo “Da Linda Pátria Estou bem Longe”, ou “Foi na Cruz... Foi na Cruz” ainda, aqui e ali, nos beiços de tardinhas, em frente do portão de tramelas de casa, na Rua 24 de Outubro, Vila São Vicente, em Itararé, nos idos de antigamente, nos tempos em que se amarrava cachorro com lingüiça de capivara, o artista do meu pai juntava tropé de gente, curiosos, vizinhos, passantes e passarinhos sondando do quarador, para ele então também solar Abismo de Rosas, Chão de Estrelas, algumas marchas-ranchos, valsas, xotes e outras modas bonitas mais. O céu por testemunha.

Mas eu tinha certa raiva do pai, entre uma mágoa e tristice. E além da vergonha de, mal me agüentando em pé, ir atrás dele – que dava no pira depressinha – parando malemal a cada cem metros, se tanto, para descansar do peso enorme do acordeom o que certamente cedo ou tarde me daria alguma hérnia. Mas eu, feito um cordeirinho desmamado, seguia religiosamente o pai, levando o acordeom para ele fazer seu show. Fraco, com raiva, envergonhado de mal me agüentar com o peso, saía cansado atrás do pai, pelas ruas de cacau quebrado de Itararé (paralelepípedos) enquanto minhas bonitas irmãs serelepes iam à frente, levando hinários, letras de músicas, Bíblias, partituras, todas elas bonitas e eu, ali, paradoxalmente ao que tinha sido bem tratado quando piá de tudo, naquele começo de adolescência, topetudo, cara de lambisgóia espeloteado, carregava o peso do acordeom que me lanhava a mão, cansava, me deixava birrento, de tromba, brabo com o pai. Será o impossível? Quando ele tocava, no entanto, fazendo bonito, eu me sentia feliz; é quando eu via prazer naquilo de sofrer, de carregar o peso para ele brilhar. Achei que, de alguma maneira, minha vaidade pueril talvez, nunca perdoaria o pai por isso. Por ter sido rico e ficado pobre. Por eu ter dado tanto trabalho – estive seis vezes para morrer – e ele ter gasto vários terrenos na farmácia do Chiquinho Pucci em Telêmaco Borba para me custear remédios caros e eu então poder sobreviver, escapar, e agora ali, pagando meu pesado e alto preço, carregando aquele bruto instrumento pelas ruas de Itararé a fora, enquanto ele fazia bonito e eu que quando bendito fruto carregara a luz, ali, pra mim, então, por fim também por força de ser o primeiro filho homem, carregava a cruz. Só por Deus. Apanhei muito de cinta, de vara de marmelo. Traquinas, turrão, topete arrebitado. Sempre fui muito hiperativo, o que minha mãe Dona Eugênia em bom português caseiro dizia espeloteado. Atentei muito minhas irmãs; acidentalmente taquei até fogo em serraria ao brincar com cepilhos e caixa de fósforos, ou seja: pintei e bordei. Só vendo pra crer. Isso porque meu pai não descobriu nem um por cento do que eu atinado aprontava. A mãe, até, dizia que eu dei dez vezes mais trabalho do que todos os outros filhos juntos. Por isso, dar alegria, ser contador de causos, tinha que ser a minha cota de compensação. Valeu a pena? Ah, mas carregar aquele acordeom pra lá e pra cá, era minha sina. Eu não suportava aquilo. Por isso, acho, talvez, mas só talvez, nunca aprendi música – sou um músico frustrado – nunca aprendi tocar instrumento nenhum. Comecei a estudar, mas parei por causa da palheta do clarinete na roupa – eu era disperso, vivia no mundo da lua – ou por causa dos calos nos dedos ao tentar aprender a tocar violão e cavaquinho com o meu Tio Jare, irmão de minha mãe Eugênia. Eu tinha bloqueado meu cérebro de alguma forma instintiva, e, a bem dizer, era também, falando sério, um manteiga derretida. Vão vendo. Quando tinha apresentações do meu pai, o que era rotina, beiçudo, lá ia eu carregar seu acordeom. Que sina. Assim foi toda a minha juventude, até deixar Itararé, terra-mãe, ir peregrinar minhas viajações por São Paulo, lutar, estudar, vencer na vida, ajudar meus familiares, escrever meus livros, depois de tomar licor de ausência de minha adorável Santa Itararé das Artes. Muito tempo depois que o pai morreu, pelos primos Paulo Rolim e Eugênio Cleto, fiquei sabendo de um ouvi-dizer do clã, o que me deixou muito triste por eu ter odiado carregar o acordeom do pai, e me fez finalmente ter de alguma forma perdoado o velho e entendido a missão do patriarca com o instrumento. Eram histórias que o povo contava, lados de Sengés, ventiladas pelo clã Correa Leite, e que me abriram o coração e desataram os nós de lágrimas guardadas. O Pai que nasceu entre 1900 e 1906 (nunca sabemos se a data de registro era certa), em 1930, quando o bando de Getúlio Vargas invadiu Itararé, ele que encorpara com outros jovens e era acendedor de lampiões de gás em Itararé, numa maroteira tentativa varonil de imprudente resistência à invasão de Itararé, até que fora preso feito um rebelde bom de briga e entrão na história. Saindo de um baile num circo que atuava em Santa Cruz dos Lopes, depois de dar seu show particular no acordeom de um palhaço cego seu amigo, com amigos joviais e bagunceiros de Itararé e de Sengés agitaram de tentar desencarrilhar vagões do trem na leva de revolucionários que viriam para a tal batalha de Itararé, quando Itararé foi bombardeada. Junto com a caravana do bombachudo gaúcho de São Borja vinham também estrangeiros, índios, negros, mamelucos, paroaras do Paraguai e Uruguai, biscates polacas; uma grande leva de putas mesmo, entre muares, burros de cargas, canhões velhos, e muitos soldados catados pelo caminho ou que se adensaram ao grupo, que se agregaram para terem o que comer, ver no que daria aquela briga nacional de meia-tigela contra a política café-com-leite de Washingtom Luiz, entre a turma paulista e os mineiros. Corria a guerra interna do Brasil que, como outras que deram com os burros nágua, essa se deu na mudança da oligarquia política, fechamento de um ciclo histórico, e Itararé foi palco, a história do Brasil passando por lá. Numa dessas tentativas isoladas de levante e revanche, o pai foi preso com seus cupinchas de ocasião, e uns mambembes soldados revolucionários o levaram, junto com amigos briguentos, para uma prisão num vagão de trem que estava parado na estação de Coronel Isaltino, adjunto ao rio Pelame. A ordem era deixar os bocós dos guerrilheiros ali, até morrerem de fome que fosse, mal vigiados por uns gaúchos cara de bosta seca, alguns estrangeiros, inclusive alemães e uma leva de pedaçudas polacas doentes para morrer de sífilis. O pai preso e sabia que, condenado de antemão, iria finar ali, pelo que intentara de inventar, correndo riscos, metido a valentão que sempre foi. Ficou preocupado, ponderou. Tinha a família, os amigos, os irmãos da igreja que largara, pois era um desviado da Presbiteriana então. Até que, entre os bens que os soldados pilharam das casas na região de Itararé toda, apareceu uma bela gaita de sete baixos importada. E foi nela que o pai, curioso, bom de prosa, dá licença, sim sor, pediu para tocar algumas polcas e xotes para agitar aqueles soldados, entreter as moças cor-de-rosa a beberem vinho, entre a turba a carnear animais que também pilharam em fazendas no entorno da região barulhada de Itararé. O pai ali, tocando acordeom para os guardiões do seu cativeiro, feito um refém tinha hora de banzo e, aqui e ali, ora puxava o fole e chorava, pedindo em promessas a Deus, para escapar daquilo, se ver livre, voltar pra igreja, salvar os amigos que, sempre da pá virada, metia em enrascadas das grossas como aquela que poderia ser fatal. Depois de tocar a noite toda, quase com os dedos sangrando, pois os revolucionários bêbados botavam alegria na tristeza deles naqueles ermos, quando um tipo alemão pediu também para solar uma musica de sua terra de origem, que lá ouvira de ancestrais. E tocou uma musica de crente, seus pais eram luteranos. Meu pai chorou. Emocionado. Um sinal de Deus? Só podia. Pediu pro alemão lhe ensinar algumas posições, fez tipo, logo, estavam amigos de ocasião, e o pai tocava aquela musica que muitas décadas depois, o filme Titanic consagrara, como “Mais Perto Quero Estar Meu Deus de Ti”; o navio afundando e os músicos tocando. Uma cena clássica do cinema americano. Pois o pai aprendeu e fez a promessa de voltar pra igreja, se escapasse da morte, criar juízo. Tenho a quem puxar?. Uma noite, Itararé já vencida, Getúlio Vargas indo amarrar o cavalo pampa no obelisco do Rio de Janeiro, assumindo a Presidência do Brasil, todos ratiando de bêbados, cozidos, depois do pai ter as mãos sangrando por tocar horas em parar, o alemão amiúde veio e tirou as amarras do pai, para que o pai também soltasse os amigos e pudesse fugir, só prometendo, para o imigrante clandestino em terras brasileiras, fugidio de diásporas da primeira guerra mundial da Europa, que usaria os instrumentos sempre para louvar a Deus, em memória do clã de origem nórdica.

O pai prometeu chorando e rapidinho escapou, pode assim viver mais de 70 anos constituir família, fundar corais e bandas em Itararé e na região de São Paulo e Paraná; ter pioneiros programas evangélicos de rádio em Itapeva, Jaguariaiva e Telêmaco Borba, podendo assim voltar para Jesus, salvar os amigos. E pagar a promessa, claro. Pois eu tinha sido ocacionalmente um ajudante dele naquela pregação, naquela louvação a Deus, carregando pra lá e pra o bendito do acordeom.

Muito tempos depois, já adulto descobri, que eu era uma espécie de armeiro do pai, naquela missão, como pagador de promessas. Um ajudante dele, e, então, finalmente descobri por fim, muitas décadas depois, que mesmo nunca conseguindo, por algum trauma instintal, preguiça frente a regras formais, neuras mesmo ou inércia cerebral (falha no psico-motoro) aprender a tocar nenhum instrumento, sendo para sempre um músico frustrado, também, talvez em memória do Pai e do seu Acordeom de Estrelas de Saudades, por causa disso que narro agora eu tinha sido marcado para sempre.

Sim, meus irmãos, eu tinha no meu próprio nome, desde o nascimento e registro no Cartório de Ventania, como uma sina, uma luz, algumas notas musicais... Si... lás... Escrevendo eu continuo solando meu pai pelaí, com o acordeom de minha alma fazendo versos como quem chora de amor e de saudade.
-0-
Silas Correa Leite – Santa Itararé das Artes, Estância Boêmia
Obra da Série “Contos de Natal, E Acontecências em Verso e Prosa”
E-mail: poesilas@terra.com.br - Site: www.portas-lapsos.zip.net

Nenhum comentário:

Postar um comentário