sábado, 19 de dezembro de 2009

Engraxate - Conto de Natal 2009, Silas Correa Leite





Conto de Natal 2009

O ENGRAXATE
Milagre de Natal de Uma Infância Pobre em Itararé


“Sou mutante. Não anseio a majestades cristalizadas em
palavras que não voltam atrás. Eu volto palavras, gestos
e sentimentos. Mudam tempos, momentos, situações...
mundo… Por que não mudo eu?... ” (Paul Valéry).

O pai que tivera alguns bens imóveis em Harmonia, Monte Alegre, Paraná, perseguido por grileiros e jagunços do político corrupto Lupion do Paraná, de uma hora pra outra ficou pobre, perdeu tudo, resolveu voltar para Itararé, para não ter que matar ou morrer, e ali a nossa vida degringolou de vez. Eu um guri depois de seis irmãs, vendo a coisa sofrível em casa, a portentosa mãe lavando roupas pra fora para sobrevivermos, a parca pensão que o pai depois doente recebia, e, cedo, muito cedo ainda, tive que trabalhar para ajudar em casa. De primeiro e muito precoce no trabalho, ainda cursando o primário no Grupo Escolar Tomé Teixeira, fui engraxar sapatos. Depois fui vendedor de dolé de groselha preta, depois fui bóia-fria em campos de feijão-jalo em terras do Romero, depois marceneiro, depois garçom no Bar do Calixtrato, até precocemente começar a cantar em shows de pratas da casa imitando ídolos da Jovem Guarda, depois sendo locutor de rádio e mesmo com 16 anos começar a escrever para um suplemento jovem que o jornal O Guarani trazia encartado.

Mas o começo da lida rueira foi difícil no início, para um manteiga derretida, quase bendito fruto entre tantas irmãs. Tinha eu mal-e-mal uns nove anos e tanto. A tosca caixa de engraxar sapatos pintada de verde-musgo e fora o pai que aos poucos e com muito custo fizera. Ganhando a Praça Coronel Jordão, ali concorrendo com guris mais afeiçoados ao serviço, eu mal sabia dar lustro direito, sequer passar graxa aprendera, muito menos limpar os sapatos dos botocudos. Teria que rapidamente aprender trabalhando, tinha que me virar como pudesse, olhar de piá pidão, com amarelão, ainda as agruras da primeira infância. Enquanto esperava um ou outro freguês de ocasião e percurso (e tive poucos, confesso), caixa de engraxar nos ombros, andava serelepe pela Rua XV, sondando os bares, as pessoas chiques, as gentes ricas dos lugares e suas acontecências no entorno festivo. Via aquele pessoal boêmio e todo trancham tomando rotineiros aperitivos, meninos bem vestidos saboreando uma Crush – que era muito cara para mim – outros comendo sonhos de valsas na Bombonieri Los Angeles em frente ao Grupo Escolar Tomé Teixeira do tempo do Professor Bonilha. Eu, mal-e-mal um piá ranhento que amava os Beatles e Tonico e Tinoco.

Tempo de vacas magras. Final dos anos 60, Itararé emperiquitada para os festejos de Natal, Walter Santana Menk no auge. Os guris ricos ganhavam brinquedos caros, locomotivas movidas a pilha, as casas com luzes coloridas, eu mal-e-mal tinha uma sopa de fubá com couve rasgada, um abraço demorado do pai, uma oração plangente da mãe, e suco do chafariz do Bairro Velho com bolinhos de chuva e licores de ausências. Tempos difíceis. Só por Deus.

E corto a pitanga da história aqui, lembrando que dia desses estava no Bar Chaplin, na rua Prudente de Morais, atrás do Palácio Vadico, do amigo e camarada Carlinhos Sampaulino, quando passou um guri de rua e me pediu que lhe pagasse um doce. Disse pro guri escolher. Ele deu um assobio e chamou dois outros moleques da turma, o Carlinhos disse que eles eram pidonchos mesmo, que eu não ligasse, mas eu aceitei e lhes paguei uma guloseima, eles agradeceram e saíram sorrindo, lambendo os beiços. Expliquei, emocionado, ao Carlinhos, justificando, tristonho de momento:

-Eu fui um guri pobre como eles, era Engraxate... Caixa de engraxar sapatos nos ombros. Olhava com jeito pidão o pessoal bebendo, comendo, que me viravam as costas, refugavam, mesmo quando eu pedia serviço:

-Vai graxa, moço?.

Com fome, pobrinho, queria tanto uma maria-mole de coco queimado, um encapotado de frango, um suspiro, umas balas paulistinhas ou toffe, um cuque de abóbora, uma Grapete, uma Crush estupidamente gelada, mas os tipos me olhavam com desdém, eu era da raia pobre, não queriam se misturar. Por isso ali, no Bar do Carlinhos, vencedor, lembrando dos tempos difíceis da vida dos tempos em que a água bebia a onça, não custava nada me colocar no lugar do outro, sentir a dor do outro, e pagar um doce, uma tubaina, para um guri de rua, um menino que eu também fui e ali estava apenas cumprindo meu dever com a consciência e a memória de um tempo já perdido nos calipiás do longe. Pois era isso o que eu queria dizer, voltando ao causo memorial. Os dias da infância pobre nas ruas, na Praça Coronel Jordão, um e outro sujeito que eu engraxava reclamando que eu manchara de graxa a calça calhambeque, que faltou lustro eficaz na botinha sem meia, quando não, os tipos fuinhas e mãos-de-vaca não me pagavam nada, e eu ficava, além de faminto, sem dinheiro pra levar pra cara, com a cara de pardo anjo sofrido a clamar por fé em justiça, num natal perdido nas dobras de um tempo qualquer. Mas nem sempre foi assim, claro. Há um Deus. E há ainda anjos azuis que tomam conta dos meninos de rua.

Subindo a Rua XV de Novembro, tempo amuando, friorento, eu, de chinelos de dedos gasto de um lado de tanto usar em peregrinação, parei em frente ao Bar XV que pintara uma chuvinha. Fiquei olhando pra dentro, com fome, as estufas cheias, o bar com bilhar, todo num ambiente alvissareiro, entrei, pedindo, quase implorando entre lágrimas:

-Vai graxa, Seu moço? Vai graxa, senhor? Vai graxa, Seu isso... Seu aquilo...

Eu queria só um par de sapatos de bico fino para engraxar, para poder levar uns trocados pra casa, uns tostões que fossem, a barriga roncando, quem dera uma coxinha, um encapotado de frango, um milagre – não era Natal?. Olhar brejeiro, roupa humilde, jeito pidão no meu silencial de poeta se arvorando na alma triste, e foi quando tudo aconteceu. O Seu Abrahão – nunca soube o nome inteiro dele, se era o que tinha uma empresa de ônibus, uma transportadora, ou um parente do clã – mas um tipo bem apessoado, bem vestido com zelo, impoluto, alto, moreno claro, na flor da idade, pose de rico, que traduziu a minha tristice com tez chã e depressinha pediu ao garçom do Bar:

-Sirva uns encapotados de frango pro guri aí.

(Humildemente chorei por dentro, mas não demonstrei, claro, talvez só estrelas brilhando nos olhos de pidão capitulado.)

-Sirva uma Crush também, ordenou Seu Abrahão.

E eu me senti dentro de um coração no céu de todas as honras. Comi e me fartei, bebi a gasosa, olhei o seu Abrahão que ainda me deu uns trocados e disse “Vá pra casa piá, está frio, vá descansar, vá com Deus... ”

Agradeci, “Deus que ajude Seu moço”, e saí coroado de amor, de humanismo, andar-de-segura-peido... calcanhar de frigideira...

Naquela hora senti que um anjo engraxava de luz a alma daquele homem de coração alumbrado que Deus pusera em meu caminho de berebento guri rueiro. Certamente foi a melhor ceia de natal que tive em toda a minha pobre infância rueira de trabalhador precoce.

Cresci, fiz-me forte por Deus, com resiliência lutei, me formei, venci na vida. Não sei direito que Abrahão era. Mas Deus certamente sabe, anotou na caderneta celeste o crédito. Nalgum lugar do passado a minha lágrima de fé e luz transbordou. Hoje ando pelas ruas de cacau quebrado de Itararé com a consciência tranquila, com a sensação do dever cumprido, eu, um guri mal-e-mal crescido que procura em cada ser, em cada irmão, em cada amigo, em cada companheiro e camarada, a alma daquele abençoado “Abrahão” que, certamente, fez da minha infância pobrinha um circunstancial presépio de luz naquele momento em que me estendeu seus sensíveis olhos bondosos, suas caridosas mãos de lutador, sua cintilante alma de asas...
-0-
Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras, Dezembro 2009
E-mail:
peosilas@terra.com.br - Site: www.itarare.com.br/silas.htm
Texto da Série “Confesso que Sobrevivi” Memórias de Uma Infância Pobre

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Nem Toda Distância é Longe

Vista Aérea de Itararé-SP, Brasil



Nem Toda Distancia é Longe

Nem toda distância é longe
Tem toda presença é física
Nem todo sexo é amor
Nem toda luz é cura
Nem todo sonho é pleno
Nem toda paz é íntima
Nem toda esperança é luta
Nem todo amor é cobrança
Nem todo poeta é sério
Nem toda felicidade é limpa
Nem toda educação é justa
Nem toda morte é perda
Nem toda dor é erro

Por isso, antes de reclamar da vida
Pense que sempre há uma saída
E, às vezes, a morte é uma cura
E viver pode ser, dependendo de vc
Um pesadelo que ninguém vê
E que esconde as labaredas do incêndio do mais verdadeiro e impossível sonho.


Silas Correa Leite
E-mail: poesilas@terra.com.br
www.portas-lapsos.zip.net

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

HAVIA UM CAMINHO DE VOLTAR PARA CASA, Poema de Natal, Silas Correa Leite





Havia Um Caminho de Voltar Para Casa


Ah querida, pode acreditar...
Havia um caminho de voltar para casa
O pai estava vivo com seu acordeon vermelho
A mãe fazendo sopa de fubá com couve rasgada
Éramos uma família pobre mas ninguém estava morto
Ruas, quintais; Itararé emperiquitada no favo da memória atiçada

Tanto tempo se passou e nos mudamos de nós, querida
A névoa ainda vem com suas sombras em preto e branco
Olho pra você e já nem me reconheço mais em mim
Se éramos esperanças ou se tudo se acabou como um pesadelo
E os que restaram têm lágrimas entre sonhos dourados
Porque é Natal e muita coisa não mais faz sentido para todos nós

Ah querida, pode acreditar
Havia um caminho de voltar para casa
Itararé era tão pertinho, quase um crepúsculo íntimo
Mas nos perdemos e agora choramos pitangas
Porque sabemos que tudo acabou como uma noite
Que se vestisse de bruma para nos fazer recordar as tristices

O que vamos fazer de nós agora que descobrimos
Que o Natal tem um presépio de pobre e não há esperança?
Tanto tempo se passou e o que restou de nós depois de tudo
Senão esse sentido de ausência e um presente que já não há
Quando eu me sinto o próprio burrinho do presépio
E a única estrela que vejo é a dos olhos saudosos chorando?

-0-

Silas Correa Leite, Santa Itararé das Letras
www.portas-lapsos.zip.net

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

BOLSA DE MULHER, SOLO MUSICAL EM PROSA LÍRICA - Crônica de Natal de Silas Correa Leite





Crônica de Natal (1)

Bolsa de Mulher - Solo Musical em Prosa Lírica

Para Danuza Leão


Amanhã...antes de se preparar para ir ao analista, de pensar em parar numa butique e comprar uma bolsa nova de grife; antes de sair para o penoso trabalho fatigante, de ter que dirigir até a faculdade ver uma pendência velha; antes de se preparar vaidosamente para fazer uma importante entrevista difícil, páre um pouquinho. Sente-se calmamente na sua predileta poltrona confortável, no seu melhor espaço do lar, e, coloque para rodar o cedê que tem na seleção aquela maravilhosa música que você mais adora; que mexe com você, resgata você, traz o céu para dentro de você, coloca você de alguma forma mágica em algum lugar do passado, nalgum sítio vetor extraordinário como um milagre, fazendo a sua consciência neural viajar como se recebesse um favo de mel, como se entrasse em alfa, fazendo você se sentir iluminada e dentro do seu próprio coração. Já pensou? Sentiu o clima? Sintonize. Capte a idéia.

Beba a música, baby! Coma a música com afeição. Inspire-na como se ela tivesse vida própria no seu psicossomático. Esteja dentro dela. Deixe que a balada rica e bela e fluente entre por seus poros, todos os poros, aquilate seu espírito de guerreira, desmanche seus andaimes (de resistência à sensibilidade tão ferida) faça você sorrir como uma criança pura que alguma forma você ainda o é, ou faça você chorar como um bebê procurando colo de mãe e mingau de maizena, numa catarse de transformadora oxigenação, e então você, numa paz algo zen-tropical, possa se encontrar consigo mesma em alto astral, no mais profundo interior de si. Lave-se no embalo e eleve-se. Música Maestro!

Há um Deus!

Pode ser...que depois do caldo encantador de passar pela musicália dessa pelica divina; dessa seda espiritual, como uma espécie de purgação perenal, muito além dessa decantação tonificadora, talvez você não precise mais correr tanto, suar tanto, sofrer tanto, se exigir tanto, se cobrar tanto, se dar tanto, nem ter que provar nada pra ninguém; se aceitar assim mesmo pujante como você é, nem precisar mais ir ao bendito analista caro, nem levar flores ao cemitério da saudade, tampouco sofrer eventual azedume temporão ou mesmo hormônico por causa de crisálidas que não vingaram, nem perder precioso tempo com bijuterias mal resolvidas da depressão, nem perder horas e dias com neuras a partir de perdas fúteis, inquietudes vazias, sobressaltos bobos ou ilogicidades próprias de certas químicas sazonais femininas de meia estação. Bolsa de mulher?

Qualquer música...As Flores do Jardim da Nossa Casa. Memory. Danúbio Azul. Caros Amigos. Se as Flores Pudessem Falar. Esse Cara. Nabuco, de Verdi. Hey Jude, Elis Regina ou Elvis Presley. Alguma, qualquer música especial e edificante, há de mexer de forma extrema e saudavelmente doce com você, com seu inconsciente, com sua gaveta cheia de gravetos de falsas culpas, e fará você relaxar como uma nuvem de algodão xadrez, descobrir-se inteira e plena em sua própria posse, em seu próprio corpo, em seu próprio eixo, em sua própria luz. Ah se a mulher soubesse toda a força que tem, na alegria e na ternura, na batalha e no tricô, na graceza ou no pudim de leite moça.

Tudo é música. Não dizem que certas mulheres são tão sonoras quanto penteadeiras de ciganas?

Muito antes da espécie humana existir no tapete voador do espaço cosmonal, no canteiro divinal da terra, o solo das galáxias inundava o espaço sideral feito palco pluridimensional. A música atemporal dos ventos, das nuvens, das chuvas de meteoritos, das poeiras cósmicas. A música dos anjos cor-de-rosa anunciando a primeira reforma de Deus, após o molde número um em imperfeito Adão e a grande perfeição final em Eva.

A Música que você bem ouvir (e muito bem otimizar-se dela), aquela que você receptar inteiramente e mexer com você a partir dessa beberagem e degustação é a que você levará para onde for. Você não veio daqui e nem vai terminar aqui. Sacou ou precisa de um mapinha? Você será o instrumento depositário, portador e hospedeiro sagracial dela. Pegue o ritmo. Faça parte da orquestra sinfônica da natureza. Todo segundo de sua vida nesse plano é ensaio. Você não é amadora. Sintonize a sua sinfonia. Saque o batom mas também pegue o tom. E os metais.

Que instrumento você quer ser e parecer? Que caixa de ressonância você é? Música é vento, som, ar, soma. Entre a aritmética e o átomo. Seja uma trombeta, uma harpa, um bandolim medieval. Seja um acordeão vermelho, uma flauta transversal, um sinal sonoro de catedrais e círios celestes.

Sendo música você soará eternamente. A vida é um estúdio. Gravando. Olhe o que você tem na sua bolsa de mulher. Rocambole de lágrimas? Tortas de perfumes? Omeletes de esperanças com rímel?

Deus é Sol Maior. E escreve por cifras tortas, pautas etéreas, pausas milenares. Solos de silêncios. Preces e almas naus.

Você é Lá. Versos brancos?

Eu, por mim mesmo, sou duas notas musicais: Si...lás...


E há ainda o descontente que não cabe em SI. Desafinado.

Ou você nunca vai querer ser a baliza lá na frente do festival de corais, preferindo assim ser uma nota musical chamada Ré menor? Fá sustenido? Ou viver sem Dó?

Seja a música. Soe alto. Vibre fé. O dial da Rádio Eterna nem precisa de antena.Você capta no coração. Conecte-se. Tudo é música. Que partitura perdida sem própolis você é? Você é opus de Deus,

Leia meu poema ao músico:

“Todo músico é mágico/Todo pensador se sobressai acima do lótus da condição humana/E há ainda os versos/Que enriquecem rocamboles/De renúncias sublimadas/Viver não pode ser um desperdício/De espaço, massa, água, ar/Toda música quer cantar isso/Numa opus sublime, singular/Cabeça, tronco, membros/Melodia, harmonia e ritmo/Todo músico quer traduzir/A luz que o procura o espírito...”



Deus é Música!



-0-

Silas Corrêa Leite – Da Estância Boêmia de Itararé-SP, Brasil
Crônica da Série “Bendito Fruto, Causos e Acontecências”
E-mail:
poesilas@terra.com.br
Site pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm
Romance ELE ESTÁ NO MEIO DE NÓS no site
www.hotbook.com.br/rom01scl.htm

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Quando Morreu, Poema


QUANDO MORREU
Para Bertold Brecht (In Memoriam)
Quando morreu o coitadoTinha profundas palavras impressas na pele da faceNada demais para um poeta anônimoDeixando o seu legadoDesmaiou sobre o tecladoA pele perdeu o viço - e o sangue seco impregnouAs marcas das teclas de algumas letrasE alguns captaram algoO poeta de-assim foiConvidado a se retirar com palavras no rostoSimbolizando que talvez continuariaVida e sensibilidade totalAinda no caixão roxoEntre flores, lágrimas e algumas cantorias rudesSeu rosto estava fácil de ler palavrasSem sentido, mas com vincosAnos depois de mortoForam tirar os ossos do cadáver já decompostoMas ainda havia nos legados os caracteresParecendo um milagreAqui e ali, nos vãosAs marcas impressas - que a terra confirmou bem(Um sobrinho já metido a poeta fezUm aquário para os restos)
......................................
Ainda hoje se vê claro
As palavras entre a água - E a suspeição tristeDe que o pobre poeta anônimoInsiste em dizer alguma coisa
Silas Correa Leite
Itararé/SP

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

A Única Oração Que Eu Conheço (Ditadura Nunca Mais)





A Única Oração Que Eu Conheço

(Conto da Série: Memórias da Resistência – 31.03.64/31.03.04)



“Só vos peço uma coisa: se sobreviverdes a esta época, não vos esqueçais nem dos bons, nem dos maus(..) Eles eram pessoas e tinham nomes, ros tos, desejos e esperanças, e a dor do último não era menor do que a dor do primeiro, cujo nome há de ficar...”


(Júlio Fuchik, 1980, in, Brasil Debates, Testamento Sobre a Forca)


Sempre fui ateu. Não posso acreditar na hipótese de que, quem fez, fez para destruir depois. Sempre fui um emérito comunista de carteirinha e filosofia. Um marxista teórico, comunista científico e socialista-democrático, em defesa de um sentido ético-plural-comunitário, para a vida em sociedade, com um humanismo de resultados.
Sempre achei que a religião é o ópio do povo. Uma burrice pegajenta no refluxo do inconsciente coletivo. Uma antiga invenção política para pôr freios na falsa moral burguesa, que nunca foi exemplar nas suas alcovas e bastidores do poder real. Acho até que a religião teria sido inventada pelo próprio diabo, se é que ele também existe, sentado no rabo da histórica hipocrisia social. Se todo homem é um animal político, como disse o filósofo Sócrates faz mais de dois mil anos atrás, todo homem é também um animal antes de tudo sexual e por isso mesmo pervertido, insano e cruel. Comida, sexo e poder. Esse é o destino do homem que, como todas as coisas, nasce, cresce, tripudia sobre cadáveres e serventias de sobrevivência amoral e decadente, fica tolo, senil, esclerosado e morre. Não há nada depois da morte. Viemos do nada e ao nada voltaremos. Somos esse vazio existencial entre o antes de o depois de. Sempre pensei assim. Do pó viemos e ao pó voltaremos, parece ser a única coisa certa escrita na Bíblia. Lama humana.
Mas resolvi de, assim mesmo, contar o que se passou comigo em tempos ordinários, difíceis. Tempos tenebrosos como diria Brecht.
Vivíamos o período tenebroso das trevas de uma ditadura militar incompetente, corrupta, violenta e senil. A Canalha de 64, cantada como Redentora, e seu capitalhordismo americanalhado, bancado por setores conservadores da ala reacionária da Igreja Católica arcaica, mais as peruas frígidas de Santana, sórdidos empresários amigos do alheio, e um projeto babaquara denominado hipocritamente de Tradição, Família e Sociedade, mas na verdade bancado por ratos olivas com coturnos, todos com medo do socialismo moreno-tropical do Comandante Fidel Castro que poderia se alastrar por toda a Latrina América terceiro-mundista, em detrimento de suspeitos interesses de agiotas do capital estrangeiro sediados no Esgoto Washington.
Eu, como muitos camaradas de um aparelho pego em flagrante, delatados por uns porcos empresários de grosso calibre, estávamos presos no DOPS, os chamados podres porões da hedionda polícia paulistana liderada pelo nefasto Delegado Fleury e seus chacais de antro de escorpiões que depois foi assassinado como queima de arquivo.
Eu tinha perdido bolsa na faculdade de Direito de Guarulhos (um bocó de professorzinho-major me fichara em desconfiança), também perdera emprego numa locadora de imóveis dias antes de ter sido promovido (o diretor era um janota coronel de reserva, líder do Lions Club e ex-diretor do Mackenzie), minha família foi vigiada, corríamos risco de passar fome, até que viram um artigo meu com Codinome Comando Alfa, denominado “A Corrupção Financia a Revolução” e assim eu fui levado de camburão como um bandido, seqüestrado por um bando de recos com fuça de hienas, para medo de meus amigos, familiares e inteligentíssimos colegas de esquerda.
O país agonizava, era uma eterna noite com um falso verniz de arapongagem e montados milagres econômicos que tinham um alto custo social, como depois se revelara a partir de um montado medo do Jango e outras tramóias de imbecis de terno, gravata, toga e farda, os reacionários de aluguel fundando novos covis de salteadores.
Fichados, éramos interrogados, cobravam nomes, documentos, atentados, datas, aparelhos, panfletagens, e muita gente morreu nessa época, incrivelmente muito mais do que se sabe, se identificou, inclusive por uma ala internacional da ONG Tortura Nunca Mais baseada na Europa, mais ainda vigente nesses novos tempos de tenebroso neoliberalismo-globalizado e uma terceirização neoescravista com privatizações-roubos e reformas que dão flanco ao contrabando informal, e também permitem aos narcotraficantes substituírem um estado propositalmente falido pela elite na sua essência básica de prover os excluídos sociais.
Diariamente vinha uma trinca de recos levar ou outro colega comuna de cela. Que era torturado de todas as maneiras. Se resistisse, voltaria a passar por outra sessão severa, de pau-de-arara a sodomia, de pancadaria e loucuras indescritíveis. Nem que eu tivesse um milhão de anos, eu esqueceria esses horrores. Muitos morriam no interrogatório. Então montavam fugas, falsos suicídios como o de Vlado Herzog, atentados, máscaras e camuflos para jogar areia na dura verdade, atirar fumaça nos crimes cometidos pela aparelhagem do estado militarista historicamente incompetente, sempre ao lado de latifundiários, estrangeiros, banqueiros, e uma burguesia decadente, amoral e insensível com as riquezas injustas, os lucros impunes e as propridades-roubos.
Sou uma testemunha da história. De certa forma sobrevivi, na medida do possível, mesmo para assistir um ex-marxista, ex-socialista, ex-sociólogo, e até ex-ateu, prostituir o Brazyl S/A com seu apoio a banqueiros irracionais, aumentando a eterna dívida externa, saqueando as empresas estatais e vendidas a preço de banana e moedas podres. E os piores comunistas são os falsos, de ocasião, que se abancam em cargos públicos por interesses mesquinhos, ególatras como melancias, vermelhos por dentro mas verdes por fora.
E como testemunha é que me cabe aqui relatar sobre a única oração que eu aprendi preso, em estado desesperador.
Detido no DOPS, via chegar e sair os suspeitos de sempre, via entrar e sair um torturado vencido pelo horror, via um bando de vaquinhas de presépio levando cadáveres para desovas em cemitérios clandestinos fomentados por um político do estilo rouba e diz que faz, eminência parda à sombra dos três podres poderes.
Era o regime de exceção. Era o arbítrio. Eu mesmo senti na pele a dor crucial dessa época. Uma determinação legal da ONU dizia que um povo podia se voltar armado até, contra uma ditadura, mas nós estávamos desarticulados e ali nos restávamos aguardando a morte, o exílio, ou as seqüelas que hoje eu sinto que são para sempre.
Pendurado num pau de arara, sem água, sem luz e sem pão, eu não podia dizer muito, primeiro porque era pela não-violência, segundo porque nunca tinha atentado contra ninguém, minha única arma era a palavra escrita e falada, porque eu era bom de dialética e sabia ocupar meu espaço denunciando, reclamando, pedindo por eleições diretas e o fim das insanidades palaciais. Se eu soubesse muita coisa, de qualquer maneira, confesso que jamais contaria, eu não era um alcagüete e sabia suportar pressões. Mas apanhei muito. Várias vezes. Quase morri. As sombras por testemunhas.
Lembro-me, no entanto que, por aqueles labirintos amorais e desumanos, perambulava sempre como um peregrino cândido e terno que, certamente corrompia financeiramente as altas patentes todas (que eram mesmo facilmente corrompíveis) e ali nos vinha dar sua palavra de conforto, seu apoio moral, seu largo ombro amigo, na sua tez de seda alva como a neve.
Esse anjo em forma de gente, era o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns.
Volta e meia nós o víamos saindo de uma cela, tentando cobrar autoridades do arco da velha, entre paisanos e militares babaquaras, e muitas vezes ele esteve comigo em meu solitário catre sujo de sangue seco, suor, lágrimas e desespero.
Nunca gostei de orações, não acredito nelas. O homem e as circunstâncias, é o que vale. Nunca gostei do Pai-Nosso hebraico, muito menos da oração inventada pela Igreja das trevas em tempos profanos de cruzadas que matavam pessoas inteligentes, geniais, com medo das reformas de Martinho Lutero e da invenção da imprensa que promovia cada vez mais a leitura da Bíblia sob diversas óticas e menos conduzidas por cabrestos abismais do Vaticano.
Quantas vezes ali, depois de apanhar bastante, machucado, sangrando, a pão e água, eu acordava sofrendo e entre gemidos, e via ao meu lado o Cardeal de São Paulo. Ela me pensava como podia no rigor do momento, no apurado do trauma, com sua voz fina e meiga dizia, sempre; com a sua branquela mão direita no meu ombro esquerdo:
- Seja forte, meu filho. Procure suportar, meu irmão. Sê firme, amigo.
E eu o olhava ali, enorme, grandioso, sem nada que pudesse nos ligar, um padre e um comunista, a borboleta e o escorpião, e o ouvia me dar forças, me encorajar, para que eu fosse forte, quando eu queria mesmo era morrer logo, pegar de minha cinta e me dependurar num cano alto, morrer enforcado e acabar com aquilo tudo.
Para muitos ele foi um bálsamo. Para mim também. Para muitos ele foi a salvação, a âncora entre o inferno e o sonho. Para tantos ele foi o passaporte da agonia para a esperança. Um Ser Humano e tanto. Insubstituível. Nunca haverá outro como ele. É na dor, na tragédia, no desespero, no medo e na fome, que se conhece o caráter e o referencial de um homem.
Confesso que nunca aprendi rezar, sinceramente não acredito muito nisso.
No entanto, cresci, fiquei forte, escapei, virei escritor, fui sovado pela dura lida, e, claro, como ser humano tenho medo, muito medo; tenho presságios, uma angústia-vívere, um ou outro surto psicótico, neuras, e o espírito às vezes atribulado, mais o risco do desemprego, o salário baixo, a falência da educação pública, e assim desenvolvi um medo do escuro, uma intuição de lobo acuado, um instinto tribal.
No entanto, nessas horas, vem-me à mente a imagem daquele homem santo ajoelhado ao meu lado, um ateu sonhando com utopias, e ele, Dom Paulo Evaristo Arns, é a oração em pessoa. O sentido de uma prece na sua mais altaneira definição.
Então alguma coisa em mim, meu espírito aventureiro, talvez, uma certa resiliência psicológica até, talvez uma porta para a luz, fala de mim para mim mesmo, a única oração que eu conheço, que eu aprendi na dor: Seja forte, Seja firme. E eu sinto um calor descomunal me passar pela espinha. Como se uma pilha-luz ligada no aparelho da memória recorrente, um arquivo neural que se assoma e me reconforta, me estimula, me incendeia. Um elo de fé?
E, confesso, não há melhor oração do que a imagem e semelhança de um homem digno, puro.
Perdoem, mas essa foi a única oração que eu aprendi. Essas simples poucas palavras cruas, me dão um sentido enorme de energização. Mas, somadas num imagético de um momento de terror, me dizem tudo, me sustentam, acho que até, intimamente, podem às vezes me ensinar técnicas de Vôos.
Se Deus existe mesmo, quando for a hora do juízo final, amargedom, sei lá o quê mais, e quando eu for pesado na balança, e me cobrarem alguma falta, direi em minha defesa que sei uma oração de peso, e certamente direi uma verdade inteira, expressando-a, recitando-a emocionado, com todo seu conteúdo de amor e luz, numa imagem esplendente.
Direi que, como Oração mesmo, inteira e plena, táctil, presencial, personalizada, conheço o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Independente de placa de igreja, ele foi um mito, um mensageiro, um visitador, um abençoado. E então, espero, os anjos de Deus, seus irmãos celestes, certamente me darão o passaporte da liberdade assistida num limbo qualquer, muito além desse pardieiro chamado Planeta Água, a Nave-Cela da escória cósmica.

Silas Correa Leite – E-mail: poesilas@terra.com.br
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